quarta-feira, 19 de março de 2008

No Peru, mascar a folha de coca é uma prática sagrada


Chrystelle Barbier
Correspondente em Lima


Proibir a mastigação da folha de coca? A idéia faz sorrir Teófila, 54 anos, que vende legumes num mercado de Lima. "As pessoas do campo estão acostumadas a mascar a sua coca: é assim já faz séculos e não será agora que eles irão parar", garante. "A minha família mora nos Andes e, nesta região, ninguém vai trabalhar sem antes consumir a sua coca, pois o fato de mascá-la proporciona energia e mata a fome", acrescenta.

Contudo, da mesma forma que muitos peruanos, Teófila está a par da notícia que andou circulando nos últimos dias. Foi divulgado em 5 de março o mais recente relatório do Órgão Internacional de Controle dos Entorpecentes (Oics, na sigla em inglês). Neste documento, esta comissão cuja função é de vigiar a aplicação dos tratados internacionais relativos às drogas, recomenda que os governos da Bolívia e do Peru tomem medidas no sentido de "suprimir ou proibir as atividades contrárias à Convenção de 1961 sobre os entorpecentes. Entre essas atividades se incluem a mastigação da folha de coca e a fabricação do mate (infusão) de coca, além de outros produtos que contenham alcalóides, que eles se destinem ao consumo interno ou à exportação".

Pilar Olivares/Reuters
A congressista peruana Hilari Supa consome folhas de coca durante sessão do Parlamento em Lima
"Costume ancestral"
Este relatório provocou uma onda de protestos entre os peruanos, que raramente deram mostras de uma tão grande unanimidade em seu movimento em defesa da folha de coca. "Os estrangeiros não podem nos dar a ordem assim, sem mais nem menos, para suprimir um costume ancestral", exclama Noé, um comerciante de 62 anos. Por sua vez, Célia, que é estudante, lamenta a existência "dos preconceitos em torno da folha de coca, que são instigados pelo narcotráfico".

O Peru é o segundo produtor mundial de cocaína, uma droga elaborada a partir de um alcalóide (molécula) presente na folha de coca. Em 2006, 280 toneladas de cocaína foram exportadas pelo Peru, contra 640 toneladas da Colômbia e 90 toneladas da Bolívia. Segundo dados da comissão peruana encarregada da luta antidrogas, 90% da produção de folhas de coca seriam dedicados à produção de cocaína. Apesar de tudo, "o consumo tradicional da folha nada tem a ver com a droga", insiste Tarcila Rivera, presidente do centro cultural Chirapaq, para quem o relatório do Oics vai na contramão dos direitos dos povos indígenas.

No Peru, mais de um milhão de pessoas admitem utilizar a folha de coca para fins alimentícios ou terapêuticos. Além de mastigá-la, muitos a consomem na forma de farinha ou de infusão, de modo a reduzir os efeitos do mal-estar provocado pela altitude. Considerada como uma folha "sagrada", e utilizada num grande número de rituais espirituais e religiosos, a coca é parte integrante da cultura das populações andinas e de certos povos da Amazônia, e isso vem ocorrendo há séculos.

"Nós continuaremos respeitando as utilizações tradicionais da folha de coca", decidiu o ministro das relações exteriores, José Garcia Belaunde. As autoridades de Lima, que vêm conduzindo uma política antidrogas financiada pelos Estados Unidos, não hesitaram a rejeitar as recomendações do Oics que dizem respeito aos costumes locais. Além disso, elas lembraram que o Peru havia obtido por ocasião da Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito dos entorpecentes, em 1988, que as medidas futuras levassem em conta as tradições ancestrais.

Na Bolívia, o presidente Evo Morales, que busca promover a industrialização da coca, também manifestou firmemente a sua oposição ao relatório do Oics.

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